sexta-feira, 29 de março de 2013

Analfabeta

Eram cinco horas da manhã.
Acordou cedo e, pulando um dos filhos que dormia no chão aos pés da cama, foi para o outro cômodo do barraco fazer café.
Voltou para acordar a filha Vera Lucia que dormia profundo, mas que precisava acordar cedo, pois, o Shopping Plaza Osasco, onde trabalhava, ficava a dois ônibus e um metrô de distância. Muito longe, portanto.
Maria da Conceição da Silva, cinquenta e quatro anos, analfabeta, era mulher sacudida, peitos espaçosos, de cor negra, dentes ilesos e alvos. Morava em Itaquera, num barraco firme, com seus sete filhos e o querido marido José, que por sinal acabava de chegar do trabalho de vigia noturno.
Com um "Bença mãe e um Deus te abençõe filha", Vera Lucia despediu-se, ainda com uma bolacha na boca, o seu café-da-manhã. Realmente. Deus a teria de abençoar demais naquele dia.
Maria da Conceição tinha que correr para deixar o almoço pronto e partir para o seu trabalho de faxineira, numa agência de viagens no centro de Osasco.
Dizem que notícia ruim sempre corre depressa e Maria da Conceição foi uma das primeiras a saber que no shopping onde trabalhava a filha, houve uma grave explosão de gás.
Não tirou o uniforme, não pediu licença, não avisou ninguém e bateu em retirada, pois o seu coração de mãe ordenava que fosse ver a filha, onde ela estivesse. Correndo desesperada pelas ruas de Osasco, ouvia dizer de centenas de mortos e feridos. Ambulâncias, helicopteros, carros de policia, bombeiros, tudo se misturava nos olhos da pobre mulher
Parou a uma certa distância e viu a cena medonha do desabamento, dos destroços, da destruição; ela nunca mais conseguiria esquecer o que presenciava. "Deus faz e não explica", sussurrou.
Parada, boquiaberta, confusa nem percebeu estar justamente no caminho que levava a uma ambulância ali perto estacionada. Por circunstâncias que ninguém explica, uma velha maca conduzida por dois bombeiros, teve que parar bem em sua frente.
Vera Lucia, Vera Lucia minha filha, - gritou ela, estendendo as duas mãos, como querendo adivinhar quem estava lá dentro.
Não é Vera Lucia, dona, este é um homem e está morto. - Respondeu-lhe apressadamente um dos homens. Para saber quem esta vivo ou morto vá até o Hospital Municipal que eles darão notícias.
Veio-lhe a certeza de que sua filha havia morrido.
Maria recuou na calçada o suficiente para encostar-se, amparou a nuca na parede, olhou o céu azul e sentiu o chão faltar-lhe aos pés. A perna direita amoleceu e ela se firmou somente na esquerda, tombando levemente o corpo. Não conseguia pensar e já não sabia mais onde estava, em que rua, em que bairro, em que cidade, em que país. Parecia então que não existia. Não posso garantir, mas tenho a certeza de que Maria da Conceição, por alguns segundos, experenciou o nada, isto é, a morte.
Mas Deus dá o frio conforme o cobertor e ela acionou suas forças internas, aprumou¬-se, enxugou as lágrimas e zarpou em direção ao hospital.
Lá chegando, com a inocência de uma criança, perguntava a todos se alguém tinha visto a sua Vera Lucia, ao que evidentemente, não obtinha resposta alguma.Um senhor aproximou-se e, entre amoroso e apressado, disse-lhe que havia duas listas pregadas na parede, uma dos mortos, outra dos vivos e que ela fosse procurar pela sua filha.
Com muita dificuldade e igual empurra-empurra, soletrando rezas aproximou-se das listas. Se por um lado esquecia-se que era analfabeta, par outro confiava nela própria, pois o que sabia ler na vida era unicamente os nomes dos sete filhos e do marido .
Aproximou-se e leu assim:
Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx XxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxXxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxXxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Vera Lucia da Conceição da Silva XxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxXxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxXxxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx XxxxxxxxxxxxxxXxxxxxxxxxxxxxxx

Leu o nome da filha. Pronto, era o que mais queria na vida. Sim, estava lá. Ela a encontrara.
Porem, novamente sentiu um frio, uma horrível dor de barriga e incontroláveis arrepios na pele. O ar lhe faltava, a vista escurecia e ela já não ouvia. O nome da filha, em que lista estaria? Na dos vivos ou na dos mortos? Meu Deus, isso ela não sabia ler.
Novamente aproximou-se das listas com o peito apertado, como se um pomo-de-adão estivesse a asfixiar-lhe a garganta seca. Os lábios tinham aquela gosma branca de quando se fala muito ou se tem um ataque epiléptico.
Conseguiu agarrar o braço de um homem que estava ao seu lado e sem poder falar olhou profundamente em seus olhos. Levando-o bem perto das listas seguiu com o dedo indicador até o princípio das palavras que lá estavam escritas e sublinhou fortemente embaixo delas. Como na hora do desespero as pessoas se entendem pelo olhar e pelos gestos, o homem compreendendo tudo gritou em seu ouvido: lista dos vivos.
Maria da Conceição, a analfabeta que sabia ler com o coração desmaiou e só acordou horas depois.

Paulo Afonso Caruso Ronca
Mestre em Educação pela PUC-SP, Prof. Dr. em Psicologia Educacional pela Unicamp, escritor e membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. É autor dos livros: Estudo Dirigido - Uma Técnica de Ensino Aprendizagem; A Prova Operatória; A Aula Operatória e a Construção do Conhecimento; Quem Conta um Conto Aumenta um Ponto; Estudar-Verbo Intransitivo? e muitos outros.

sábado, 2 de março de 2013

Mi casa es su casa.

Há algum tempo que estou me mudando... Em Novembro comecei a encaixotar as coisas, a dar outras e a separar o que eu ia precisar em cada mês que se seguisse. O que eu quisesse usar até Janeiro ia na maior mala comigo pra Belém. O que eu fosse precisar no fim de Janeiro iria ficar na minha primeira parada, a casa da Jaque e da Kelly, que me cedeu seu quartinho aconchegante enquanto viajava. O que eu fosse precisar em Fevereiro ia pra casa da Christian, minha segunda parada, onde passei alguns dias em Fevereiro. E o que eu fosse precisar só quando encontrasse um cantinho pra chamar de meu, ia pras diversas caixas meio selecionadas, meio misturadas, objetos de cozinha com almofadas e panos de chão (limpos, claro), livros com cabides e artigos de decoração junto a fotos e mais livros. Livros foram enfiados em quase todas as caixas, pra nenhuma ficar tão pesada que eu não pudesse carregar ou pelo menos arrastar.

E, assim, todas as minhas coisas se acomodaram em algumas caixas de diversos tamanhos, em sacolas e em malas, que se espalharam por Vinhedo e Valinhos em pelo menos cinco casas diferentes. Os últimos itens utilizados, lençóis, travesseiros e toalhas remanescentes, foram para a casa do Björn e da Glayce, que foram uns fofos e lavaram tudinho, pra me devolver no meu retorno ao interior de São Paulo.

Nesse processo, é incontável o número de pessoas envolvidas. Tesouros que encontrei no caminho, que me ajudaram a realizar mais um sonho, a tornar possível a ideia de um lar, de um apertamento individual ou compartilhado, de uma casa pra eu cuidar, limpar, decorar e bagunçar à vontade.

Desde porteiros, zeladores e vigias, que recolheram para si os "restos" de objetos, alimentos e plantas que ficaram para trás na antiga casa (tinha até uma cama king size), e, no caso dos porteiros da nova casa, que se dispuseram a receber entregas tipo geladeira e afins, enquanto eu estava no trabalho.

Desde colegas que se interessaram, opinaram, perguntaram e deram sugestões quanto aos imóveis, móveis, eletrodomésticos e companheiros de casa que eu procurava, e que se ofereceram para me hospedar ou abrigar minhas coisas enquanto eu estava sem teto, que se dispuseram a me dar carona para cá e para lá, com coisas, com malas, vindo do aeroporto, indo para o aeroporto, carregando as caixas de uma casa para outra.

Desde amigos e familiares que me deram/venderam/cederam/emprestaram as mais diversas coisas que se possa imaginar: tempo, atenção, compreensão, dinheiro pra caução, fogão, máquina de lavar, mesas e cadeiras, talento para montar mesas e cadeiras, panelas, pratos, talheres, colchão, cobertor, papel em branco, pastas vazias, ferro de passar e por aí vai.

Desde minha família e meu amor, que acompanharam pelo Whatsapp, passo a passo, a escolha do apartamento, das cores, do armário, da geladeira, do servidor de internet.

Até minha irmã, que dedicou dias a me ajudar a limpar cada centímetro quadrado, a escolher cada novo objeto, a medir, planejar e montar o interior, e até ficou um dia a mais para poder comprar aquela geladeira que só entrava em promoção por um dia, em plena segunda-feira de trabalho.

E todos que acompanharam e torceram, e prometeram visitar e conferir, cada um tem um pedaço desse novo lar que eu estou criando aos pouquinhos.

Algumas das pessoas que mais se interessaram e acompanharam de perto todo esse processo foram uma colega de trabalho e seu esposo, junto com a filha de 9 anos que eu amo de paixão. Eles não mediram esforços para fazer tudo que estivesse ao alcance deles, guardando com cuidado grande parte da minha mudança, que eles foram pessoalmente buscar na casa antiga; transportando a mudança para a casa nova; conseguindo as minhas duas únicas mesas, que ficaram tão perfeitas no apartamento que parece que foram feitas sob medida; insistindo em transportar o fogão e a máquina de lavar que comprei usados, muito antes que eu imaginasse; me acolhendo por dias em sua linda casa, com uma cama quentinha, um quarto limpinho, uma comida deliciosa e o carinho de família que tanto me faz falta... E isso tudo sempre com os maiores sorrisos e a vontade de servir ao próximo.

Eles, especialmente, me ensinaram o sentido da verdadeira caridade. Em uma das últimas vezes que nos encontramos, o Ezequiel, esposo da Christian, me mandou uma mensagem que dizia "É uma honra poder servir." Me vêm lágrimas aos olhos quando lembro dessa frase, tão difícil de comparar com qualquer outra. Mostra a caridade que vem do coração, que eleva, que engrandece. Vocês conseguem perceber a diferença entre as palavras ajudar e servir? Refleti muito sobre isso depois de conhecê-los. Quando ajudamos, fazemos algo por alguém que necessita. As imagens que me vêm são duas: um passante dando esmola a alguém sentado na calçada, e um amigo estendendo a mão ao outro para ajudá-lo a levantar. Ambas as imagens mostram ações louváveis, de atenção e de dedicação ao próximo. Mas quando servimos, temos o outro como senhor. Me vem à mente a imagem de servidão mesmo, em que aquele que auxilia é "inferior" ao que recebe o auxílio. Como senhor e escravo, como patrão e empregado, como dono da propriedade e "serviçal". E, por mais injustas que essas relações possam ser em muitos dos casos, quando servimos voluntariamente, sem esperar nada em troca, há aí uma humildade genuína. É o princípio da caridade pura, que eleva aquele que recebe, em vez de o diminuir. E quando um se sente honrado por servir o outro, este é ainda mais elevado, e aquele que serve ainda mais humilde. É ajudar sem ferir o orgulho. É agradecer por poder prestar um serviço.

Eu espero ter algum dia a chance de retribuir e de levar adiante esse novo conceito de caridade, estudado por anos e agora sentido na pele, com toda a humildade e todo o amor que o Cristo ensinou.
E, como eu respondi na mensagem de texto, é uma honra conhecê-los e poder tê-los como exemplo.

E é uma honra ter a chance de ser tão ajudada, servida, amparada por tantos anjos que Deus enviou em forma de porteiros, zeladores, colegas de trabalho, família, velhos e novos amigos. Queridos amigos, tesouros que me auxiliaram tanto por todos esses meses de mudança e adaptação: meu sincero muito obrigada, todo o meu amor, de coração.











Mi casa es su casa. =)