domingo, 30 de agosto de 2009

Diário de viagem

um diário de viagem que se preze tem que ser incompleto e de preferência escrito dias depois do ocorrido. Isso garante que o viajante viveu intensamente cada momento, e nao se preocupou com recordacoes, já que as mais importantes têm que ficar bonitinhas ali, no coracao e na memória, e isso só ocorre quando as coisas sao vividas com propriedade.
Por isso, aí vai a trasncricao de partes do meu diário de viagem, incompleto e atrasado, como deve ser.



San Gimignano, 11 de Agosto de 2009

Viagem quase acabando... tenho tanto o que escrever! Acho que nao terei tempo... Mas isso provavelmente significa que, quando eu nao estava aproveitando a viagem, estava descansando, recuperando as energias pra continuar a jornada...
Vou (tentar) fazer uma retrospectiva, comecando pelo presente. Estamos num vilarejo chiquérrimo na Toscana, todo de pedra, cercado por uma muralha de uns cinco metros, no topo de uma montanha. Tem uma vista maravilhosa para o vale, que é repleto de plantacoes de uvas e de milho. A cidade em si já é de tirar o fôlego. Cheia de torres e pracas, pocos, casas antigas, muros marcados pelo tempo... É um cenário medieval autêntico. Sob o sol da Toscana, enche nossos olhos de marrom, vez em quando adornado com um colorido de flores nas janelas, nas fachadas, na frente das portas, pra quebrar a cor de pedra que é a mesma nas casas, nos muros e nas ruas estreitas e sem calcada. Daqui da janela do quarto, por trás da cortina vermelha a gente vê uns quintais e umas plantas, quando vai estender roupa no varal que tem no peitoral da janela. Sempre se ouve um sino ou uma flauta, que invade o quarto com um som doce, quase tao doce quanto a melancia gigantesca que eu e a mamae compramos no boteco da Eide, brasileira de Goiânia, moradora de San Gimignano há 10 anos, cheia de energia e de história pra contar. Ela foi nosso anjo da guarda nessa parte da viagem, indicando os lugares baratos, os enderecos escondidos, e inspirando a gente com tanta alegria, coragem e vontade de viver.
O pôr-do-sol do miradouro da cidade é um espetáculo. Claro que nem se compara com aquele que a gente vê de Mosqueiro, Salinas, Algodoal, Marajó ou mesmo de Belém, ali no Forte do Castelo ou na Estacao das Docas. Mas ver um pôr-do-sol do alto de uma montanha, encostada no muro de uma cidade do século 13, bom, nao tem preco. Agora já era hora de ver outro, mas tô com uma preguica...
O artesanato aqui é riquíssimo e de um bom gosto quase impecável, com raras excessoes. As bolsas de couro sao uma coisa de louco, mas os precos também. A que eu me apaixonei, por exemplo, custava 149 euros, e nao era a mais cara, nem quase isso. O trabalho em cerâmica, em lata, em vidro, as loucas pintadas à mao, os bordados em linho, os utensílios de madeira... A gente quer continuar andando, mas se demora tanto e nem percebe, indo de loja em loja, uma do lado da outra, cobrindo inteira a "avenida" principal, que é a Via San Matteo. Claro, as coisas sao todas caríssimas, mas cada uma lembra um parente, um amigo, ou nós mesmos, e a gente sai comprando ou se segurando pra nao comprar, porque é lindo demais e, pelo que eu vi por aí, único.
Tem apenas uma coisa que nao agradou tanto: os vendedores... Parece que a venda é tao garantida, devido ao turismo infinito, que eles nao se preocupam com simpatia ou bom atendimento. Nao falam inglês, nao sorriem (aliás, ficam com cara emburrada e às vezes, até de nojo ou desdém) e nao hesitam em demonstrar impaciencia quando o cliente demora demais para escolher. Em quase toda parte tem plaquinhas de "DON'T TOUCH!!!" em letras maiúsculas e bem sublinhadas, e ai de quem nao souber o que "don't touch" significa, porque nao escreveram em nenhuma outra língua. Bem, mas como eu e a mamae nao fazemos a menor questao de levar patada ou comprar briga com nenhum italiano mau humorado, escolhemos a dedo os lugares onde fizemos nossas compras. A água foi no canto da Eide, claro. O café da manha e o jantar foram num café que chama "Lucia e Maria", onde tínhamos desconto de 20% por estarmos hospedadas na Casa da Rosetta (ela própria uma simpatia de pessoa!!). Os garcons de lá sao animados e atenciosos, mesmo no horário de pico. O almoco do primeiro dia foi num restaurante com vista panorâmica para o vale, e lá o garcom que nos reconheceu como brasileiras nos atendeu em espanhol e nos pediu para falar português, porque ele entendia. =)
Lá que eu tomei o primeiro suco de laranja espremido na hora (4 euros!!!) em oito meses. A mamae, que estava há 12 dias só tomando suco de caixa, delirou com o "vaso grande" de Spremute (que de grande nao tinha nada, nao...).
Fomos numa loja de velas e sabonetes feitos à mao que tínhamos visto fechada umas duas vezes, em San Gimignano. Quando conseguimos encontrá-la aberta, o primeiro olhar disse "que bagunca" e "nao sao muito bonitos nao...". Mas a verdade é que era tanta coisa, que demorou pro olhar de fato olhar. E quando ele olhou de fato, enxergou cada obra prima, uma mais singela e única que a outra, todas misturadas na loja-atelier "Soap Opera", onde o dono gordinho e bem humorado terminava, dedicado, uma pintura linda em uma vela de parede. Ele ouviu eu e a mamae decidindo o que levar e disse quanto custava a vela que escolhemos: duedeci. Eu traduzi: "vinte". Ele foi rápido: "No, no. Duedeci.", e esperou meu cérebro pensar naquela folha do meu caderninho de viagens onde eu escrevi os números em italiano, com ajuda da prima da Giovanna, a Roberta. "Twelve!" Ele sorriu, dizendo "si!", sim, doze. A mamae disse que nao podia ser aquela, porque era muito frágil, e ia quebrar na viagem. Ele disse que faria um ótimo pacote e a vela nao quebraria. A mamae disse: "nós somos mochileiras!", e ele insistiu, dizendo em italiano "com o pacote que eu vou fazer, se tiver um acidente, por pior que seja, a vela vai continuar inteirinha." Eu quis dizer "Echt?", mas me controlei, porque ele nao ia entender. Falei "É?", mas nao foi a mesma coisa. Engracado, tenho agora expressoes que só consigo dizer com emocao se disser em alemao...
Eu reforcei e cobrei a promessa na hora da embalagem, e observei ele, gordinho, com óculos de aro grosso, todo concentrado e empenhado em fazer o melhor pacote ever, o suor escorrendo da testa e a língua pra fora da boca ingual a um desenho animado. Ele jogou o pacote pra cima e deixou cair em cima da mesa: "se a vela quebrar, pode me ligar que eu mando outra!". Todos rimos e eu apertei a mao dele dizendo em inglês: "parabéns. Você é um artista." Ele agradeceu e se despediu, e no dia seguinte ainda nos encontrou na rua, nos reconheceu e disse "Ciao! Buon Giorno!" (pra quem nao sabe, "Ciao" é "oi" e "tchau" em italiano.) Uma gracinha.
Outra rara excessao, claro, foi a Eide, mas não foi só porque ela é brasileira e nós também. A todos ela atendia em italiano, animada, com um sorriso no rosto, fazendo a diferenca. E quando esquecemos a garrafa de água na prateleira, porque tinhamos parado pra tirar uma foto com ela, ela saiu correndo gritando por nós rua acima, dizendo "tá vendo? Foi querer tirar foto minha... dá nisso!" =)
Os óculos. A mamae estava com os óculos quebrados, faltavam dois parafusos, e toda ótica onde entrávamos, nos diziam que faltava a peca, e quase nos expulsavam da loja. Em Siena, a mulher ficou enchendo a paciência, perguntando "Can I help you?" um zilhao de vezes, trazendo óculos caríssimos - e horríveis - pra mamae experimentar, e no final ainda ficou com raiva porque nao compramos nada. Aí, 10 metros adiante, entramos em outra. Mostrei o óculos quebrado, que a mulher pegou, olhou e disse algo que eu entendi como sendo "vamos ver o que eu posso fazer". E sumiu lá pra cima. Eu e a mamae ficamos experimentando uns Carrera, Ray Ban, Dolce&Gabbana, assim, todos com 20 a 50% de desconto, claro... Aí depois de uns 20min, um cara chega com o óculos novinho em folha, ao que eu e a mamae soltamos um "Ah!" de susto, quase uníssono. "Quanto costa?" - estávamos treinando as poucas frases em italiano que aprendemos. "Niente!" (Outro "Ah!" uníssono.) Como assim? Ela ainda diz isso com um sorriso? Mamae insiste em saber o preco, e a mulher sorri mais: "tre millione!", ela ri. Mais um oásis no meio do deserto.

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