sábado, 10 de outubro de 2009

A Arte de Perder.

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Já contei pra vocês da Simone? A Simone é uma "guria" que veio passar um dia na minha casa uma vez. Ela é do Sul e tá morando em Colônia, e veio visitar Hamburgo e nao tinha onde ficar. Bom, ela me ensinou uma coisa que eu nunca esqueci. Foi assim. A gente tava caminhando pro restaurante preferido da galera (Kartoffelkeller, claro) e ela contou das botas que ela estava usando na hora. Contou que achou o par de botas na rua, empézinho, bonitinho, só esperando por ela. Ela olhou e pensou "maneiro! nao tenho botas!". Calcou e... surpresa! Coube direitinho no pé dela. Que coisa, nao? No dia seguinte estávamos eu, Simone e Giovana, que também passou a noite na minha casa, e pá! A Simone esbarra num par de luvas de couro lindas, juntinhas, na frente da Hauptbahnhof. Ela pegou e colocou na mao. Certinho!! E adivinha... ela nao tinha luvas. Contaram pra Simone do costume alemao de nao pegar pra si nada que se acha na rua (exceto dinheiro, talvez. E Pfand!). Eles acham uma blusa, um casaco, um cachecol, uma luva, um bichinho de pelúcia, o que for, e colocam fora do caminho, pendurado numa cerca, em cima de um arbusto, bem à vista da pessoa que com certeza vai voltar pra buscar o que perdeu. Assim a gente anda na rua, nas calcadas, e sempre vê alguma coisa ali esperando pelo dono. Dá até vergonha de pegar, porque os outros vao olhar e vao saber que você está roubando, pegando algo que nao é seu, e que vai fazer falta pra alguém.
Outro dia eu vi um lenco LINDO, penduradinho na cerca da casa no final da minha rua. Eu passei a primeira vez, vi, parei, olhei em volta, tinha muita gente, ai que vontade de pegar!! Era verdinho transparente, com umas florzinhas pequeninas coloridas, bordadas. Disse a mim mesma que se eu passasse ali de novo e o negócio ainda estivesse lá, eu ia pegar pra mim. Passei mais três vezes e nao peguei. Essa cultura alema impregna mesmo...
Bom, ontem eu tava com a Felia passeando, tirando fotos do Outono que tá chegando, e deixei umas coisas em cima do carrinho dela: a capa da máquina, minhas chaves, o livro que eu estava lendo e um saquinho com biscoitos que a Felia gosta. Saí alegre e saltitante, colecionando folhinhas vermelhas e colocando dentro do livro, e tirando minhas fotos, observando as pessoas... No caminho que eu faco com a Felia tem muitas pessoas com carrinhos de bebê ou fazendo jogging, ou os dois. E nesse meio tempo umas três passaram por mim. Quando dei por mim, o saquinho de biscoito e o livro tinham sumido. Olhei ao redor, procurei embaixo do carrinho, nada. Fiz o caminho de volta e achei: só o saquinho. Meu livro foi roubado!! =( Pela primeira vez, senti o que os outros devem sentir quando fazem o caminho de volta e nao encontram o que perderam pendurado em nenhuma cerca. É horrível. Me senti desarmada, primeiro porque ia ficar sem saber o final da história, e segundo porque nenhuma das folhas que eu juntei jamais vai voltar pra mim. Lembrei de um poema da Elizabeth Bishop, que chama "A Arte de Perder", e ela diz que nao tem nenhum mistério em perder algo.
E é mesmo, quando você perde algo que você gosta muito e sente que nao pode viver sem, e entao descobre que pode sim, que há vida além daquilo... É uma sensacao de desespero no início, de sem chao... Mas depois vem a sensacao de liberdade e é nisso que você deve se agarrar. Alguém vai ler aquele livro, e pode ser que guarde as folhas como uma lembranca de alguém que nunca conheceu. É o que eu faria.
Alguém vai fazer bom uso das botas que você, por algum motivo misterioso, deixou juntinhas no canto da rua. Alguém vai esquentar as maos e se sentir o máximo nas luvas de couro que você deu a sorte de perder - JUNTAS! (Quem além de mim perderia os dois lados da luva de uma vez só?)
E se você achar algo na rua de que possa fazer muito bom uso, pensa bem, por que nao pegar? Além de dar um novo sentido ao objeto, pode dar um novo sentido à vida de quem o perdeu.
E como diria a Simone, "Você precisa, você reza por aquilo. E Deus ajuda, mas você tem que pegar!"

Esperando o dono, antigo ou novo.

3 comentários:

Filipe Baratta disse...

Nossa, que interessante. Nao me parece correto pegar algo que nao é meu, mas acho que diante de certas situaçoes nao sei se seria virtuoso(?) o bastante pra nao "roubar". Nunca passei por algo assim, embora admire bastante aqueles que encontram determinadas quantias (altíssimas) de dinheiro e, sem pestanejar, devolvem ao legítimo dono.
Por outro lado, Há situaçoes interessantes como essa que descreveste. Eu nunca tinha pensado por esse lado.

melzinha disse...

"Meu livro foi roubado!! =( Pela primeira vez, senti o que os outros devem sentir quando fazem o caminho de volta e nao encontram o que perderam pendurado em nenhuma cerca. É horrível. Me senti desarmada, primeiro porque ia ficar sem saber o final da história, e segundo porque nenhuma das folhas que eu juntei jamais vai voltar pra mim. Lembrei de um poema da Elizabeth Bishop, que chama "A Arte de Perder", e ela diz que nao tem nenhum mistério em perder algo.
E é mesmo, quando você perde algo que você gosta muito e sente que nao pode viver sem, e entao descobre que pode sim, que há vida além daquilo... É uma sensacao de desespero no início, de sem chao... Mas depois vem a sensacao de liberdade e é nisso que você deve se agarrar. Alguém vai ler aquele livro, e pode ser que guarde as folhas como uma lembranca de alguém que nunca conheceu. É o que eu faria."

Que lindo, Di. De verdade!

Sarah disse...

adorei a historia... a arte de perder, nao é facil administrar e achar vida apos a perda, pode doer, demorar, complicado!
gostei mto do blog, voltarei!
beijos